quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Érico, do bar de alguma estrada do leste europeu, para Marieta, em BH

Olá mamãe,
As coisas aqui em São Paulo vão muito bem; fez um pouco de frio ontem e hoje, e choveu granizo, viu no jornal?
Os professores andam puxando, escrevo pouco porque tenho muito para ler todos os dias, e o serviço na oficina também não me deixa vadiando.
Aqui tem tanta gente diferente de mim que até parece país estrangeiro, e cada sotaque é um idioma-barreira com visto difícil de se conseguir.
Semana passada, um dia depois de te telefonar, me mudei pro apartamento da frente; estou dividindo com o Matheus, um colega de classe; o dinheiro estava curto pra morar só.
Passo por aquela ponte do jornal todo dia, no trem de ir ao trabalho, ela é pendurada mesmo e eu sempre acho que vai cair.
Mas não comento com ninguém, se um dia despencar nem vou poder dizer que avisei.
Estou com saudades mas não vou poder ir em casa esse fim de semana, peguei uma gripe por conta da friagem, e na outra semana já vou ter as provas.
Provavelmente só nos veremos daqui a uns 15 dias, mas te escrevo de novo até lá.
Beijos em todos,
Érico

domingo, 16 de dezembro de 2012

" - Vou escrever uma carta à minha namorada. À velha maneira. Uma falsa carta, para apenas para me distrair, apenas para distrair saudades dela.
 Uma carta falsa? Haverá carta que não seja falsa? E lembro as cartas de amor que o meu pai ditava a minha mãe. Era um ritual, às derradeiras horas da tarde, quando se ouvia o coaxar dos sapos nas lagoas em volta. Nós éramos negros e mulados despromovidos a negros. Restavam-nos as margens do bairro, onde se acumulavam chuvas e doenças. Martina Baleiro, minha mãe, fazia-se bonita para as suas redações. Aquele era o único momento em que ela recebia palavras bonitas da parte do seu homem. Apenas naquele momento ele lhe surgia manso, quase submisso, como se pedisse perdão. Imóvel e dobrada sobre o papel, a mãe parecia uma tela envelhecida. A seu lado, Rolando rabiscava infinitos deveres de casa. Nesse momento, ele era mais idoso que a nossa própria mãe. Ainda hoje ressoa em mim a voz do meu pai em soletrado ditado: 
- Meu querido Henrique, meu amado marido, único amor da minha vida... estás a escrever, Martina? 
E encomendava longas missivas, sempre iguais, enrolando as palavras como se estivesse embriagado. Que difícil relação meu pai tinha com as palavras! Herdei essa má relação com a escrita, em contraste com Rolando para quem as letras eram um jogo de brincar. Talvez seja por isso que me irritava a fluência com que o meu companheiro de viagem vai rabiscando copiosas linhas. Ou, quem sabe, o que me perturba é não ter ninguém a quem escrever uma carta de amor?"

A Confissão da Leoa, Mia Couto