domingo, 16 de dezembro de 2012

" - Vou escrever uma carta à minha namorada. À velha maneira. Uma falsa carta, para apenas para me distrair, apenas para distrair saudades dela.
 Uma carta falsa? Haverá carta que não seja falsa? E lembro as cartas de amor que o meu pai ditava a minha mãe. Era um ritual, às derradeiras horas da tarde, quando se ouvia o coaxar dos sapos nas lagoas em volta. Nós éramos negros e mulados despromovidos a negros. Restavam-nos as margens do bairro, onde se acumulavam chuvas e doenças. Martina Baleiro, minha mãe, fazia-se bonita para as suas redações. Aquele era o único momento em que ela recebia palavras bonitas da parte do seu homem. Apenas naquele momento ele lhe surgia manso, quase submisso, como se pedisse perdão. Imóvel e dobrada sobre o papel, a mãe parecia uma tela envelhecida. A seu lado, Rolando rabiscava infinitos deveres de casa. Nesse momento, ele era mais idoso que a nossa própria mãe. Ainda hoje ressoa em mim a voz do meu pai em soletrado ditado: 
- Meu querido Henrique, meu amado marido, único amor da minha vida... estás a escrever, Martina? 
E encomendava longas missivas, sempre iguais, enrolando as palavras como se estivesse embriagado. Que difícil relação meu pai tinha com as palavras! Herdei essa má relação com a escrita, em contraste com Rolando para quem as letras eram um jogo de brincar. Talvez seja por isso que me irritava a fluência com que o meu companheiro de viagem vai rabiscando copiosas linhas. Ou, quem sabe, o que me perturba é não ter ninguém a quem escrever uma carta de amor?"

A Confissão da Leoa, Mia Couto 

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