sexta-feira, 15 de março de 2013

Carta que a namorada imaginária de Virgínia a enviou em resposta

Ouvi espectros da sua simplicidade intangível me rodear enquanto descia louca pelos degraus como se não me visse atravessar sua passagem em cada um deles e você lhe falava para que eu não ouvisse _ eu estava a sua frente e você me falava para que eu não existisse _ você não falava mais _ jogava lenços nas malas e falsificava ideias de vistos inautorizados para que a imigração lhe falasse você esteve por fora plantando camomilas para chás e levando ante-salas aos livros - você esteve fora de mim daquilo que eu era impossível habitar ao mesmo tempo também o que eu achava que seria. Você era completamente o que eu achava que seria _ não como pessoa, era o espaço que eu usasse para circular enquanto fosse, você não o habitava mas o era, eram suas paredes, suas unhas, seus quadros, seus cílios, seus dentes, seus jardins de inverno, suas janelas, seus olhos, suas escápulas, seus joelhos, suas maçanetas, seus lustres, suas tomadas, suas rachaduras, deslizes, azuleijos descontínuos, seus ombros, seus pés, suas grades, suas calçadas, seus ouvidos e garagens e suportes para pequenos aparelhos de tv. Era aí que eu seria mas você não pôde no mesmo espaço ser tempo, pois você não estava no âmbito, você o era, e eu falava francês. E eu te gastei como se já vivesse eternamente desde sempre - segurava seus pés e você se esvaía, molhava a areia da ampulheta, escorregava lama. Não sei se já foi embora porque enquanto vivo em você, cruzo a sala e deito-me no seu umbigo, passam você pulando os códigos do relógio e te vejo escrever o bilhete como se eu não existisse _ um bilhete perene, você nunca parará de escrevê-lo tantas vezes já li _ malas perenes, incontáveis lenços que você joga enquanto a vigésima mão sua ainda escreve e algumas das suas pernas servem para driblar o caminho onde pereço impedindo-a de passar todos os lances de escada, não deixo que atravesse suas pálpebras mas você chegou à cozinha enquanto ainda tento - agora que você já passou o suficiente para que se tornasse necessário acender o candelabro (há dias falta você elétrica) - tento amarrar o cadeado fechei o seu cabelo seu queixo todas as chaves - seu útero no fogão - você deixando à porta - virando avesso.

Bilhete de fuga deixado por Virgínia

Notei desencaminhava parou de arder não me estendi.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Érico, do bar de alguma estrada do leste europeu, para Marieta, em BH

Olá mamãe,
As coisas aqui em São Paulo vão muito bem; fez um pouco de frio ontem e hoje, e choveu granizo, viu no jornal?
Os professores andam puxando, escrevo pouco porque tenho muito para ler todos os dias, e o serviço na oficina também não me deixa vadiando.
Aqui tem tanta gente diferente de mim que até parece país estrangeiro, e cada sotaque é um idioma-barreira com visto difícil de se conseguir.
Semana passada, um dia depois de te telefonar, me mudei pro apartamento da frente; estou dividindo com o Matheus, um colega de classe; o dinheiro estava curto pra morar só.
Passo por aquela ponte do jornal todo dia, no trem de ir ao trabalho, ela é pendurada mesmo e eu sempre acho que vai cair.
Mas não comento com ninguém, se um dia despencar nem vou poder dizer que avisei.
Estou com saudades mas não vou poder ir em casa esse fim de semana, peguei uma gripe por conta da friagem, e na outra semana já vou ter as provas.
Provavelmente só nos veremos daqui a uns 15 dias, mas te escrevo de novo até lá.
Beijos em todos,
Érico

domingo, 16 de dezembro de 2012

" - Vou escrever uma carta à minha namorada. À velha maneira. Uma falsa carta, para apenas para me distrair, apenas para distrair saudades dela.
 Uma carta falsa? Haverá carta que não seja falsa? E lembro as cartas de amor que o meu pai ditava a minha mãe. Era um ritual, às derradeiras horas da tarde, quando se ouvia o coaxar dos sapos nas lagoas em volta. Nós éramos negros e mulados despromovidos a negros. Restavam-nos as margens do bairro, onde se acumulavam chuvas e doenças. Martina Baleiro, minha mãe, fazia-se bonita para as suas redações. Aquele era o único momento em que ela recebia palavras bonitas da parte do seu homem. Apenas naquele momento ele lhe surgia manso, quase submisso, como se pedisse perdão. Imóvel e dobrada sobre o papel, a mãe parecia uma tela envelhecida. A seu lado, Rolando rabiscava infinitos deveres de casa. Nesse momento, ele era mais idoso que a nossa própria mãe. Ainda hoje ressoa em mim a voz do meu pai em soletrado ditado: 
- Meu querido Henrique, meu amado marido, único amor da minha vida... estás a escrever, Martina? 
E encomendava longas missivas, sempre iguais, enrolando as palavras como se estivesse embriagado. Que difícil relação meu pai tinha com as palavras! Herdei essa má relação com a escrita, em contraste com Rolando para quem as letras eram um jogo de brincar. Talvez seja por isso que me irritava a fluência com que o meu companheiro de viagem vai rabiscando copiosas linhas. Ou, quem sabe, o que me perturba é não ter ninguém a quem escrever uma carta de amor?"

A Confissão da Leoa, Mia Couto 

domingo, 16 de setembro de 2012

Bilhete ao outro que Letícia escreveu para si mesma

Já nos desejamos feliz aniversário um ao outro três vezes e nenhum foi. Não era pra ser. Já já congela o nível de alinhamento no qual sempre vemos os cosmos repartirem nossos corpos físicos, refletidos para que o outro perceba a existência de um. Vou colar na parede essa oração para não me acabar quando acabar. Não sei porque esse domingo preguiçoso se arrastando na sequência de dois meses. Também não sei se terá fim. Eu vou ser menos estrangeira de mim, todavia, nunca seremos nós.

domingo, 9 de setembro de 2012

Bilhete que Felipe jogou por baixo da porta de Louise 2 dois dias após sua breve mudança

Não me dê bom dia no elevador, te ouvi cantarolando uma gymnopedie, morri de medo que você me desse bom dia; não me dê bom dia no elevador, por favor, eu te amaria muito fácil.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Portual

Eulália,

Estou em Genebra, fui três vezes esfaqueado pela legislação dos ventos que encerram essa década. Poderia expandir panoramas históricos, anexar notícias e essas coisas do euro, mas os contextos insolúveis foram banidos de me permear. Falam francês, ça m'est égal, vultuam les miserables sous le ciel de Suely. Os contextos me desalentam, são quatros horas e os contextos já me desalentam, estou paralelo a infinitos trópicos que me desalentam. O conceito de me desfazer impregnou pequenos ladrihlhos dessa rua, não conhecem seus passos, a não ser pelo(s) já passado(s) que a continha(m). Adiantei as pequenas e esparsas perenidades que nos fizeram findos. Coexistiram nossas contra-mãos o suficiente. Despendi seus pertencimentos por em mim não terem sido fecundados. A parede intra-uterina descamou meus planos. Se vieres não tão alta verás que a meus pés aprendi a cultivar qualquer razão para movimento. Quis te enviar carta curta para cortar teus cárceres de tempo, calcário trato a todo corpo-vento. Entendi a caótica catarse e quis sobressaltar-te tanto quanto síncope catalítica ou contra-tempo; não questionei quando continhas tantos tensos tatos que te cercavam tal qual iconoclástico latifúndio. Perder-te teceu meus escassos contrapontos, tratou de utilitar continentais tralhas que, taciturnas, trituram minhas entranhas pra cacete. O aluguel aqui é caro, procuro alguém pra dividir
a vida
no entanto
não me é. Os versos estão para que a prosa não se perca mais em atos falhos conjuradores dos pronomes pessoais em segunda pessoa quando me refiro a qualquer falta. Não és tu, a falta me fazia a mim mesmo; é esse idioma habituado a servir às ilusões diárias como a seu exército. Nem sei porque me explico, a dialética das justificativas me armazena entrópico.

Valentín